Convidamos três poetas para escreverem inspiradas em quadros da artista plástica Paula Siebra.
Aceitaram o convite as poetas Ivana de Lima Fontes, Laís Araruna de Aquino e Pâmela Filipini.
Sem mais delongas, começamos com Laís Araruna de Aquino fazendo seu Estudo para Além do Objeto sobre a Igrejinha.
ESTUDO PARA ALÉM DO OBJETO
Laís Araruna de Aquino
para chegar lá, entra-se em uma estrada de barro
o bambu cresce como um arco sobre as cercas e faz sombra no chão
no caminho, uma ingrejinha de paredes brancas e janelas verdes
na segunda bifurcação, a propriedade surge à esquerda
e a casa da minha avó desponta no topo
no terraço, havia cadeiras de balanço e o piso era de azulejo,
onde patinávamos e cortávamos a bola contra a parede
na sala, a mesa grande de madeira persiste mas o aparador não há mais
nem nós nos sentamos nas cadeiras quando a noite cai
quando fazia o sereno, chamavam para entrar
e comíamos canja, pão branco e queijo coalho
a minha avó tirava o miolo inteiro do pão e passava geleia de laranja
a minha tia servia o leite com duas colheres de nescau e punha açúcar
mas o caldo era tão doce e deixávamos o fim
minha tia falava é para o santo e por isso gostávamos dos santos
naquele espaço, a sagração era o sopro da noite que vinha à mesa
e continuava pelos corredores e a cozinha entre pés e murmúrios
nos quartos, havia um terço em cada cama
e minha tia, beata, ensinava o anjo-da-guarda
e perguntava se havíamos rezado antes de dormir
depois a casa se enchia de silêncio e lá fora habitava um silêncio
maior, recortado pelo latido dos cães despertos na madrugada
o nosso sono era resguardado pela vigília dos deuses,
[ um dos quais se fez homem e morreu
e a nossa finitude humildemente se curvava ao escuro da noite
sob um céu de estrelas distantes e incapturáveis
ali, o lugar se abria como uma nave para abrigar os homens
e a divindade era uma ave preta que pousava e levantava voo
nós ainda não estávamos jogados nas profundezas de um eu criador
de cuja graça e máquina partiria o cheiro das mangas e jasmins
de cujo engenho dependeríamos para não derrocar
[ uma última compreensão
o mundo, o que estava lá, não o que criamos, era passagem e altar
por onde transitávamos a inutilidade dos nossos gestos
e recebíamos nossa mortalidade como um eclipse do eterno
nesse mundo nos apagaríamos mas ele ressurgiria em outra
estação como uma árvore ancestral persiste no meio do deserto
não a dominação das coisas
mas o acontecer de seu mistério
era a primeira luz que nos envolvia na frescura da manhã
Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife. É autora do livro Juventude (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia de 2017.
Paula Siebra nasceu em Fortaleza, Ceará. Em 2016, muda-se para o Rio de Janeiro para estudar Pintura na UFRJ. A artista tem como enfoque imagens relacionadas ao cotidiano, à intimidade e ao imaginário nordestino. Começa a expor em 2017, numa coletiva no Museu Nacional de Belas-Artes. Desde então, participa de diversas outras exposições em instituições como Centro Cultural dos Correios e Centro Cultural da Light.Seu trabalho tem origem na exploração de temas já consagrados na Pintura, como retratos, paisagens e naturezas-mortas, que ao longo do tempo vão ganhando um caráter formal peculiar: há uma simplificação no desenho da forma e uma redução no contraste entre os tons cromáticos que estabelecem polarizações entre realidade e sonho, como um devaneio sobre o cotidiano.
Comment (3)
Laís Araruna, você é a pernambucana mais mineira que existe. Acho até que você nasceu simultânea no Recife e em Itabira. E tua poesia sobrepaira no universo das “plantas pequenas”, em cuja “proximidade mora um deus”. Não há vírus que vença teu poema…